Argentina: pobreza dispara e atinge 15,7 milhões de pessoas; situação afeta 52,9% da população

Argentina: pobreza dispara e atinge 15,7 milhões de pessoas; situação afeta 52,9% da população

Novos dados divulgados nesta quinta-feira (26) reforçam a pressão sobre o presidente Javier Milei, que completou 10 meses de governo em uma Argentina castigada por forte crise econômica e social. O presidente da Argentina, Javier Milei, em imagem de arquivo
Natacha Pisarenko/AP
O número de argentinos que vivem abaixo da linha da pobreza aumentou no primeiro semestre deste ano e chegou a 15,7 milhões de pessoas, segundo o mais recente levantamento do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos do país (Indec), divulgado nesta quinta-feira (26).
A pesquisa, que abrange 31 aglomerados urbanos da Argentina, aponta que mais da metade da população (52,9%) está em situação de pobreza, cenário que abrange 4,3 milhões de famílias — 42,5% do total do país.
Os novos dados reforçam a pressão sobre o presidente Javier Milei, que completou 10 meses de governo em uma Argentina castigada por forte crise econômica e social, com dívidas elevadas, câmbio deteriorado, reservas internacionais escassas e inflação na casa de 236%. (leia mais abaixo)
Durante os seis primeiros meses da gestão Milei, 3,4 milhões de pessoas entraram para a faixa da pobreza, segundo o Indec. O acréscimo é de 11,2 pontos percentuais (p.p.) em relação ao segundo semestre de 2023, quando 12,3 milhões de pessoas (41,7% da população) estavam nessa situação.
Para classificar que um cidadão argentino está abaixo da linha da pobreza, o Indec calcula o rendimento das famílias e o acesso a necessidades essenciais, incluindo alimentos, vestimenta, transporte, educação e saúde.
Ainda de acordo com a pesquisa, 5,4 milhões de pessoas estão em situação de indigência, ou 18,1% da população. No segundo semestre de 2023, esse número correspondia a 3,5 milhões de pessoas (11,9%).
Quando observadas as famílias, 1,4 milhão foram consideradas indigentes (13,6%) no primeiro semestre deste ano — acima das 870 mil contabilizadas no fim de 2023 (8,7%).
O Indec classifica como em situação de indigência as pessoas que não têm acesso a uma cesta de alimentos suficiente para suprir as necessidades diárias de energia e proteína.
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Desde que Javier Milei assumiu o poder, o índice mensal de preços do país caiu dos 25,5% em dezembro de 2023 para 4,2% em junho deste ano. Ainda que o acumulado seja de expressivos 236,7% na janela de 12 meses, essa desaceleração tem sido um dos trunfos da gestão.
Milei assumiu a Casa Rosada no fim do ano passado com o desafio de aliviar a severa crise econômica que o país enfrenta há décadas. Além da inflação exorbitante, estão no centro do problema a dívida pública, a falta de reservas em dólar e a desvalorização da moeda local.
O corte de gastos e o ajuste das contas públicas estão no foco de Milei. A ideia é que, melhorando a parte fiscal, a economia argentina dê mais confiança aos investidores, destrave investimentos privados e passe a andar nos trilhos.
Para a população, as medidas são doloridas. O chamado “Plano Motosserra” — referência ao corte de gastos — determinou uma desvalorização do câmbio, paralisação de obras públicas e o corte de subsídios em tarifas de serviços essenciais.
Em outra perspectiva: a inflação desacelerou, mas a base de comparação também subiu. Desde o início do ano, os preços de água, gás, luz e transporte público estão bem mais altos.
“Não acho que [a inflação] ande de mãos dadas com os aumentos salariais e impostos”, disse à agência de notícias Reuters o cabeleireiro Gustavo García, no mercado central de Buenos Aires. “A inflação cotidiana é muito maior do que 4% ou 5%.”
O mercado de trabalho argentino também piorou e a pobreza subiu, enquanto o PIB do país levou tombos de 5,1% no primeiro trimestre e 1,7% no segundo trimestre deste ano. (saiba mais adiante)
Em sua posse, Milei avisou que a economia ia piorar antes de ver resultados. Por isso, apesar do custo social, as medidas iniciais elevaram os ânimos do mercado financeiro.
Afinal, como planejado e apesar da impopularidade das medidas, as reservas em dólar aumentaram e a Argentina registrou, no primeiro trimestre, seu primeiro superávit fiscal desde 2008. O superávit acontece quando a arrecadação é maior do que os gastos.
Ainda assim, o câmbio continua instável, o crescimento das reservas não é rápido o suficiente e a dívida pública continua sendo um fantasma para a equipe econômica. Com isso, o fator longo prazo começou a preocupar até quem, inicialmente, apoiou as medidas de choque de Milei.
Entenda abaixo, em tópicos, o que acontece na economia da Argentina.
A dificuldade com as reservas internacionais
O risco de um novo calote
O dólar, a inflação e os reflexos políticos
Os custos socioeconômicos
A dificuldade com as reservas internacionais
Apesar do avanço nos resultados fiscais e do processo de compra de dólares no mercado cambial, a Argentina tem mostrado dificuldade em conseguir robustez em suas reservas internacionais.
As reservas são valores que um país possui em moeda estrangeira. Funcionam como uma espécie de “seguro” para fazer frente às suas obrigações no exterior e a choques externos, como crises de desvalorização acentuada da moeda local. São parte importante para a conquista de confiança e a atração de investimentos.
Quando Javier Milei assumiu o cargo, em dezembro de 2023, o colchão de dólares da Argentina era de pouco mais de US$ 21 bilhões. Com todas as medidas de arrocho, o valor chegou a US$ 30 bilhões em abril deste ano, uma alta de mais de 40%. Em setembro, no entanto, o valor já caiu para cerca de US$ 27,2 bilhões.

“Milei conseguiu fazer a reserva subir um pouco, mas ainda está longe do necessário. Para manter o regime de câmbio da Argentina, o FMI [Fundo Monetário Internacional] estima que o nível adequado de reservas é de US$ 62 bilhões. Ou seja, o país tem menos da metade”, analisa Adriana Dupita, economista de mercados emergentes da Bloomberg Economics.
Em tentativa de alavancar as reservas argentinas, Milei incluiu no “Plano Motosserra” um aumento provisório do imposto de importações (chamado de “Pais”, que incide sobre a compra de dólares).
A ideia do governo é elevar as exportações e diminuir as importações para deixar a balança comercial no azul. Exportar mais e importar menos significa mais dólar entrando na economia do país — um dos processos importantes para a melhora das reservas e a queda da pressão sobre o peso.
De fato, o saldo da balança comercial tem sido positivo: em agosto, as vendas para o exterior subiram 14,9% em comparação com o mesmo mês de 2023, enquanto as importações caíram 29,8% no mesmo período.

O movimento, no entanto, tem esbarrado em velhas travas econômicas do país, como a crise cambial. (entenda o cenário do dólar mais abaixo)
Com o peso fraco e sofrendo interferência do governo para que não se desvalorize demais, exportadores agrícolas estão segurando estoques à espera de um câmbio mais competitivo e de uma melhora nos preços internacionais de commodities.
Cálculos da Sociedade Rural da Argentina dão conta de que, pelo menos até o início deste segundo semestre, cerca de US$ 20 bilhões em grãos exportáveis estavam armazenados no país em compasso de espera para vendas.
“A Argentina melhorou bastante em relação ao que estava antes de Milei, mas não o suficiente para dizer que a economia está estabilizada, é confiável e que é vista como sustentável daqui para frente”, diz Adriana, da Bloomberg Economics.
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O risco de um novo calote
A economista, que monitora de perto a situação do país vizinho, destaca que a dificuldade da Argentina de acumular reservas também se reflete em uma demora do país em deixar de gerenciar o fluxo de capital, como é o caso do controle do câmbio.
“Enquanto o país tiver controle de capitais, investidores vão achar muito arriscado levar dinheiro para lá”, diz. “Dessa forma, e sem acumular reservas, cresce muito a chance de um novo calote da dívida pública no ano que vem.”
O nono e último calote na história da Argentina ocorreu em 2020, quando o país deixou de pagar cerca de US$ 500 milhões em prestações da dívida para os credores que já estavam atrasados, chamados no jargão do mercado de “cupons de bônus”.
Ao FMI, o país deve mais de US$ 40 bilhões — mais que as reservas do país. Os valores são de um programa de empréstimo tomados pelo ex-presidente Mauricio Macri, que se arrasta há anos e cujos acordos foram rediscutidos no início da gestão de Javier Milei.
O resultado foi a liberação de mais US$ 4,7 bilhões à Argentina em fevereiro deste ano. Na ocasião, o FMI informou ter concedido os valores para “apoiar os claros esforços políticos das autoridades e restabelecer a estabilidade macroeconômica” do país.
A organização internacional chegou a classificar como “impressionante” o progresso econômico da Argentina após as medidas implementadas por Milei. O fundo reforçou, no entanto, que “o caminho para a estabilização nunca é fácil”.
Outra aposta do governo argentino é ter o caminho facilitado para novas renegociações e acordos em caso de vitória de Donald Trump nas eleições dos Estados Unidos. O país é a principal voz no FMI e a economia mais forte e importante do mundo. O alinhamento político de Milei com Trump poderia, portanto, “criar pontes” importantes.
“Mas ainda tem que pagar o que já foi emprestado”, pondera Adriana, da Bloomberg Economics. “Digamos que Trump seja eleito. Ainda assim, ele assume só ano que vem. O que a Argentina faz até lá, com dificuldade nas reservas e sem a entrada de investimento estrangeiro?”
A especialista também destaca que ficou para 2025 uma outra antiga dívida externa do país, que vinha sendo renegociada ao longo dos últimos anos. “São cerca de US$ 25 bilhões em amortização e pagamento de juros — quase o tamanho das reservas deles”, diz Adriana.
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Argentinos estão comendo menos carne
O dólar, a inflação e os reflexos políticos
Um dos pontos de incômodo do mercado financeiro com Milei é sua ordem de prioridades. A interpretação é que o presidente argentino tem dado muita atenção ao controle da inflação e deixado em segundo plano ações com foco no longo prazo.
Federico Servideo, diretor-presidente da Câmara de Comércio Argentino Brasileira de São Paulo, afirma que a inflação tem servido como uma âncora econômica para Milei, “mas parece que, cada vez mais, esse se torna um suporte político”.
“O governo, em termos de opinião pública, continua bem avaliado. Isso indica que há uma relação direta, amplamente reconhecida entre os analistas de opinião pública, entre a inflação e o sucesso de Javier Milei. A derrota da inflação é o grande ativo deste governo”, afirma.
Servideo acredita que os cenários político e econômico da Argentina estão entrelaçados pela dúvida sobre o momento de tomar medidas cruciais — e também impopulares. A questão abrange, por exemplo: quando levantar o controle cambial e quando eliminar a multiplicidade de taxas de câmbio?
Conforme já mostrou o g1, a histórica crise cambial da Argentina fez o país ter diversas cotações da moeda norte-americana, que vão de precificações oficiais a paralelas, como o chamado “dólar blue”.
“Essa diferença, se ampliada, gera uma expectativa inflacionária. Os preços voltam a subir e, com isso, a base do governo treme. São muitos questionamentos sobre a questão financeira, mas que afeta a política”, diz Servideo.
Milei tentou eliminar a distorção com a desvalorização da moeda argentina aplicada logo no início de sua gestão. A margem diminuiu, mas não o suficiente.
Agora, com os agentes de mercado mais desconfiados da capacidade de controlar a crise, o dólar blue segue descolado do câmbio oficial. O dólar oficial está cotado em pouco mais de 940 pesos, enquanto o blue é encontrado a 1.215 — uma diferença de quase 300 pesos.
Veja no gráfico abaixo.

Para Adriana, da Bloomberg Economics, Milei “exagerou no câmbio” para não ter forçar novas desvalorizações depois. Desde a forte desvalorização no peso no início de seu governo, o presidente argentino optou por leves ajustes na cotação oficial do dólar, de 2% ao mês, em uma estratégia conhecida como “crawling peg”.
Em outras palavras, a medida define que, a cada mês, sejam necessários mais pesos para adquirir US$ 1. Mas especialistas afirmam que a situação econômica conturbada exigiria um ritmo maior de desvalorização do peso para facilitar a recomposição das reservas internacionais.
A questão é que, quanto mais alto o dólar oficial, mais os preços de produtos e serviços tendem a avançar no país, impactando justamente a maior preocupação do mandatário argentino: a inflação.
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Os custos socioeconômicos
A alta nos preços seguem sendo um grande peso para os argentinos. No primeiro semestre, a inflação acumulada da Argentina foi de 79,8%. Nas ruas, no entanto, há certo ceticismo sobre a relação entre o índice geral e a cesta de produtos consumidos pela população — em especial, a mais pobre.
O governo tem promovido reajustes no salário mínimo. Quando Milei assumiu, era de 156 mil pesos. Agora, o piso chegou a 268.056,50, uma alta de 72% de dezembro a agosto.
Mas o mercado de trabalho está pior. Como dito, o PIB argentino recuou 5,1% no primeiro trimestre e 1,7% no segundo trimestre de 2024. Os resultados aprofundaram a recessão do país.
Uma atividade econômica menor vem acompanhada de desemprego. O setor privado do país demitiu cerca de 177 mil funcionários entre novembro de 2023 e abril de 2024, segundo relatório do Centro de Estudos de Política Econômica (Cepa).
O Cepa aponta a queda do consumo e a grave recessão econômica que o país enfrenta como principais causas das demissões.
E os números representam apenas o mercado de trabalho formal. Na Argentina, a informalidade atinge quase 50% dos trabalhadores. A taxa oficial de desocupação está em 7,6%, acima dos 5,7% registrados no último trimestre do ano passado.
Segundo o Cepa, o setor de construção foi o mais atingido desde que Milei suspendeu as obras públicas como parte de sua política de redução do déficit fiscal. Mais de 56% dos empregos perdidos foram no setor, seguido pela indústria, com quase 43% dos desligamentos.
O dados contrastam com a alta taxa de pobreza, divulgada nesta quinta-feira pelo Indec.
Não à toa, até o churrasco, uma das maiores tradições argentinas, perdeu espaço: a alta nos preços fez o consumo de carne bovina cair ao nível mais baixo em um século, mostrou um relatório da Bolsa de Comércio de Rosario.
Em meio aos mais recentes reflexos econômicos do aperto fiscal de Milei, o sentimento de parte da população é de “sacrifício necessário”. O argentino Isidoro Recalde, de 67 anos, por exemplo, disse em entrevista à Reuters que apoia o plano do novo presidente.
“O que pagávamos antes era insignificante”, declarou, em referência aos valores antes subsidiados pelo governo. “Vamos ser realistas. No dia a dia, as coisas são complicadas, mas temos que seguir em frente.”
Posicionamentos como o de Recalde ajudam a explicar a popularidade de Javier Milei ainda em torno de 50% — mas em queda. Para especialistas, esse tipo de apoio pode ser colocado em xeque caso resultados positivos consistentes não passem a ser observados pela população.
“A classe média argentina entende que está fazendo um sacrifício em nome do reequilíbrio da economia. Mas esse sacrifício não pode ser indefinido. Em algum momento ele precisa começar a render frutos”, diz Adriana, da Bloomberg Economics. “Milei está tendo que equilibrar vários pratos.”
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