Cação é tubarão ou raia: saiba por que o comércio ameaça espécies e pode colocar a saúde em perigo

Cação é tubarão ou raia: saiba por que o comércio ameaça espécies e pode colocar a saúde em perigo

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Cação é carne de tubarão — Foto: Programa REBIMAR da Associação MarBrasil

Cação é carne de tubarão — Foto: Programa REBIMAR da Associação MarBrasil

Muita gente não sabe que, ao preparar a tradicional moqueca de peixe com cação, está colocando um tubarão na mesa… muito menos que este pode pertencer a uma espécie ameaçada de extinção. Apesar de menos comum, é possível ainda que uma raia esteja no prato.

Isso porque “cação” é apenas um nome genérico usado no comércio de tubarões e raias no mundo, explica a especialista em tubarões da Universidade de São Paulo (USP) Bianca Rangel. Cientista da ONG Sea Shepherd, ela lidera a campanha “Cação é tubarão”, que pretende alertar a sociedade sobre a questão.

“O que se pensa, geralmente, é que cação é um tipo de peixe ou é um tubarão pequeno capturado perto da costa. Mas, na verdade, cação é qualquer espécie de tubarão: pequenos, filhotes e até mesmo os oceânicos, de grande porte”, diz Bianca.

Eles e as raias são parte do grupo dos elasmobrânquios, dos peixes cartilaginosos, que não possuem esqueleto ósseo.

“O termo cação é uma palavra portuguesa derivada do espanhol [‘cazón’] que, há muito tempo, era atribuída a uma espécie de tubarão específica. Mas, há dezenas de anos, acabou aplicada para todas as espécies de tubarão”, explica o biólogo Hugo Bornatowski, pesquisador das ONGs Associação MarBrasil e Observatório de Justiça e Conservação (OJC).

O consumo da carne desses predadores que estão no topo da cadeia alimentar também pode ser um perigo para a saúde, já que eles acumulam substâncias nocivas e metais pesados ao longo da vida (saiba mais ao fim da reportagem).

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Normativa do Brasil permite a venda de qualquer tipo de tubarão seja feita com nome genérico “cação” e não obriga que a espécie seja identificada. — Foto: Programa REBIMAR da Associação MarBrasil

Normativa do Brasil permite a venda de qualquer tipo de tubarão seja feita com nome genérico “cação” e não obriga que a espécie seja identificada. — Foto: Programa REBIMAR da Associação MarBrasil

Falta de informação

O desconhecimento sobre o assunto é grande no país: 69% dos brasileiros não associam o tubarão ao cação e 94% não o relacionam à raia, segundo pesquisa feita em 2021 pela Blend Research e a Sea Shepherd Brasil em que 5 mil pessoas foram ouvidas.

E a legislação e o comércio colaboram para a desinformação. Isso porque, no Brasil, uma normativa permite a venda de qualquer tipo de tubarão com nome genérico “cação” e não obriga que a espécie seja identificada no rótulo. A exigência só existe para salmão e bacalhau.

A pesca de tubarão só é ilegal quando se trata de espécies que estão em extinção, uma lista feita pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), do Ministério do Meio Ambiente.

Mas o Brasil é o maior importador de cação do mundo e, atualmente, não há nenhuma regra que proíba a entrada de carne de espécies em extinção, alertam os biólogos. E também não há identificação dessas espécies nas embalagens.

Comendo espécies em extinção

O número de espécies ameaçadas de extinção tem aumentado por causa da pesca desenfreada no mundo todo.

Por ano, esse comércio retira dos mares mais de 100 milhões de tubarões e raias, colaborando para uma redução de até 95% de algumas dessas populações, aponta a pesquisa “O negócio da carne de tubarão e raia”, publicada pela World Wide Fund for Nature (WWF) em 2021.

No mundo, 36% das 1.200 espécies conhecidas de tubarões e raias estão ameaçadas de extinção. Já no Brasil, 40% das 150 espécies de tubarões registradas estão na mesma situação, afirma Bianca, da ONG Sea Shepherd.

“Estamos focando em cobrar medidas regulatórias na importação, já que não temos, em nível nacional, estatística pesqueira”, diz. “Um exemplo é exigir que a carne seja identificada a nível de espécie, além da proibição da importação de espécies ameaçadas de extinção.”

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Comércio de carne de tubarão no mundo — Foto: Arte/g1

Comércio de carne de tubarão no mundo — Foto: Arte/g1

De onde vem o cação

Entre 2009 e 2019, o país comprou cerca de 149 mil toneladas de carne de tubarão, com origem, principalmente do Uruguai, que serve, na verdade, de rota para a carne que chega de grandes exportadores como Espanha e Portugal.

É muito mais do que a produção nacional, que é de cerca de 20 mil toneladas por ano, diz Rodrigo Barreto, pesquisador associado do CEPSUL/ICMBio e secretário da Sociedade Brasileira para o Estudo em Elasmobranquios.

Uma coleta de 200 amostras de posta de cação feita em comércios do Paraná identificou, por meio de análises genéticas, uma série de espécies ameaçadas como tubarão-martelo, cação-anjo e raias-viola, segundo Hugo Bornatowski, pesquisador das ONGs Associação MarBrasil e Observatório de Justiça Conservação (OJC).

A coleta foi feita pela Associação MarBrasil, por meio do Programa de Recuperação da Biodiversidade Marinha (Rebimar).

Segundo Bornatowski, esse tipo de identificação acaba sendo feita, hoje, por iniciativas isoladas no país devido à frágil fiscalização e falta de dados pesqueiros – como os das espécies que são capturadas e desembarcadas.

Para Rodrigo Barreto, do CEPSUL/ICMBio, uma série de fatores acabou enfraquecendo essa fiscalização, dentre eles, a redução do número do quadro de pessoal nos últimos anos.

Atualmente, o órgão responsável por montar as operações contra a pesca ilegal é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama).

Já as regras e a estatística pesqueira são de responsabilidade da Secretaria de Aquicultura e Pesca, do Ministério da Agricultura. Para Barreto, esse tipo de informação também é importante para criar um radar de quais espécies estão sendo capturadas, porém, segundo ele, não há dados da atividade pesqueira nacional desde 2007.

O g1 procurou os ministérios do Meio Ambiente e da Agricultura para comentar o assunto, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem.

A fiscalização também é feita por meio de secretarias ambientais dos estados e municípios. E, quando a legislação regional é mais forte que a nacional, fica valendo a primeira, diz Barreto. “O tubarão azul, por exemplo, pode ser capturado no Brasil todo, mas não pode no Rio Grande do Sul”, diz.

‘Lavanderia’ de barbatanas

O Brasil se tornou um dos maiores mercados de importação de carne de tubarão depois da proibição da prática do finning, que consiste em cortar as barbatanas dos tubarões e descartar a carcaça no mar.

As nadadeiras são muito valiosas no mercado do Leste Asiático. A sopa de barbatana, por exemplo, é até sinal de status entre os chineses.

O Brasil, junto com o Canadá, foi um dos primeiros países a assinar um tratado ratificando a proibição do finning, em 1998.

Por outro lado, o mercado encontrou no país um local para direcionar a carcaça do tubarão, que não é tão valiosa quanto às barbatanas, o que, para Barreto, faz com que o Brasil seja uma “lavanderia de barbatanas”.

Risco à saúde

Além da polêmica com espécies em risco, o consumo dessa carne pode trazer riscos à saúde.

Por causa da poluição das águas, animais marinhos estão acumulando diversas substâncias nocivas em seus organismos, como microplásticos, agrotóxicos, resíduos de combustíveis, além de metais pesados, como o chumbo e o mercúrio.

Segundo a nutricionista Alessandra Luglio, os dois metais afetam a capacidade humana de memória e estão relacionados ao desenvolvimento de doenças cognitivas, como Parkinson, Alzheimer e demência.

O tubarão, porém, tem uma acumulação muito maior de substâncias nocivas em relação a outros peixes. Isso ocorre por dois fatores. Primeiro porque ele está no topo da cadeia alimentar e, portanto, consome animais menores que também ingerem metais pesados.

“O tubarão come, inclusive, os animais que ficam no solo marinho, que têm mais contato com a deposição dos metais pesados”, afirma Alessandra.

Outro fator é que tubarões têm uma vida longa, de até 50 anos, o que faz com que eles acumulem substâncias por muito tempo.

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